21 de janeiro de 2010

Escravidão, Periculosidade e Segurança no Limiar da Sociedade Disciplinar no Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro no Século XIX)

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Abril/2008

A Escravidão no século XIX se constituiu a partir de uma complexa rede de relações econômicas, políticas, sociais e culturais que só podem ser entendidas mediante ao legado colonial, as imbricações entre o “Antigo Sistema Colonial” e as situações do escravo na sociedade escravocrata. Nas palavras de Emília Viotti da Costa, “a desagregação do sistema escravista na América está intimamente relacionada com a crise do sistema colonial tradicional” (VIOTTI, 1998, p. 18). Procuraremos num contexto mais abrangente como referências casos em São Paulo e Rio de Janeiro para apontar e analisar não os grandes quadros da economia escravista, pelo contrário, deteremos nos principais casos das problemáticas ligadas ao controle social, a segurança pública e os limiares da sociedade disciplinar no Brasil, tendo em vista a preocupação com os escravos e as perseguições a estes grupos sociais que eram vistos como ameaça a segurança e a ordem no Império na tentativa de criar dispositivos de defesa social e prevenção de possíveis rebeliões.
A expansão do café decorre na persistência do trabalho escravo que perdura na manutenção do regime escravista; a proibição do tráfico negreiro pela legislação britânica não foi suficiente para suprimir a utilização da mão-de-obra escrava nas fazendas de café e minimizar o controle social da escravidão nas cidades da Corte.
De acordo com Emília Viotti (1998), ocorre uma diferenciação dos processos de produção nas zonas cafeeiras entre os fazendeiros do Vale do Paraíba e os proprietários urbanos do centro e oeste paulista. Tais especificidades de cada região engendraram uma dificultosa passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, substituição que não desencadeou de forma simplificada, pois os fazendeiros não tinham os recursos para recompor a força de trabalho de trabalhadores livres e atrair os imigrantes europeus que estavam mais interessados em trabalhar em áreas com maior produtividade e devido as exigências do mercado internacional e uma economia em expansão que intensificou o comércio de escravos (alta dos preços a partir da cessação da importação de escravos africanos) no interior das zonas cafeeiras.
A herança colonial da escravidão e a continuidade multifacetada do racismo pós-abolição, da mentalidade escravista, intolerância e perseguição aos negros sob o estatuto de cidadão livre e as relações ambivalentes na sociedade, as divagações da lei como “letra morta” e justificativas da opinião pública acerca da desarticulação da ordem escravocrata (1), nos propõe possibilidades de análise das rebeldias dos cativos no Rio de Janeiro e as implicações da autoridade policial máxima da Corte e seus dispositivos de vigilância, segurança, coerção e disciplina aos escravos, libertos e segundo as terminologias empregadas pelo chefe de polícia Eusébio de Queiróz a respeito das estratégias cotidianas para enfrentar os “pretos livres”.
Os escravos e capoeiras foram fundamentais no processo de sufocamento da revolta dos soldados irlandeses na Corte, porém a situação dessas camadas sociais tornou-se ambivalente. Esta ambivalência fica evidente nos relatos de Walsh, pois ele via a importância desses grupos para “o sufocamento da insurreição estrangeira” e simultaneamente o perigo que eles representavam para a sociedade, principalmente a presença dos “moleques” e a cumplicidade na participação do escravo no combate.
A participação de escravos e capoeiras na manutenção da ordem do Império tornou-se uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo que eles ofereceram segurança aos moradores e o Estado, também passaram a ser preocupação e medo por estarem armado e em grande número podendo culminar em um novo levante (SOARES, 2001, p. 324-329).
O medo era vigente entre os administradores da Corte se caso as rebeliões que aterrorizavam as cidades viessem a incorporar a ameaça de movimentos populares na rua e a participação de negros escravos e libertos articulados às estratégias internacionais suspeitas de “haitianismo”, no qual expressava o temor das autoridades em relação às insurreições urbanas acusada na suspeição generalizada de uma possível “conspiração internacional” suscitadas pelos abolicionistas, sublevações dos escravos e africanos livres.
Ao invés de pensarmos as relações de poder como um atributo e uma apropriação conservada na posse, unificação de segmentos transcendentais na forma de “Aparelho-Estado”, amarras monolíticas e congeladas das determinações de classes, centralizações globais e esferas gerais apropriados por totalidades do poder de Estado e seus enquadramentos binários na sequência entre dominadores e dominados; podemos pensar como os escravos, libertos e livres pobres articulavam suas próprias estratégias que atravessavam segmentos locais, difuso, descentralizado, instável e não-estratificado dessa disseminação microfísica do cotidiano enquanto exercício de afetos e conjunto estratégico capilarizado que se dispõem na distribuição de singularidades; entre elas se potencializam as fugas para os quilombos, os suicídios, os abortos, a sedução de senhores e as contendas judiciais pelas alforrias e as lutas contra a prostituição de mulheres negras no convívio sócio-cultural, político-econômico, científico-jurídico e institucional.
Em suma, a compra e venda de escravos na Corte não envolvia somente assuntos restritos de preocupações econômicas, o envio de negros para o interior estava ligado também a uma questão de segurança coletiva, controle da periculosidade de insurretos no âmbito de uma cidade que pretendia diminuir os “males da Corte”, punição aos negros, sobretudo os africanos na Casa de Correção e vigilância de um espaço cada vez mais heterogêneo por conta da mobilidade de cativos que circulavam em meio a táticas e enfrentamentos múltiplos, minuciosos e desconhecidos nas relações de forças e poder (2).
Portanto, na sociedade brasileira no contexto do final do século XIX e a partir da década de 1850 começaram a se delinear transformações profundas e incisivas. As novas bases da reestruturação das relações de trabalho, a complexa organização e ampliação dos espaços urbanos, a proclamação da República e outros fatores, assinalavam as pretensões, expectativas e interesses particulares de setores específicos e certos grupos coletivos de anunciar o advento de um novo tempo.
As políticas de controle social implicadas nas propostas administrativas da organização republicana viabilizaram redimensionar rigidamente e com maior abrangência o reconhecimento e legitimidade dos protótipos burgueses em via de definição dos parâmetros pretensiosos da constituição da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização, formulando a execução de novas estratégias de disciplinarização dos corpos treinados e/ou docilizados sobre uma “ética do trabalho” e acerca de normas moralizadoras. A organização política da República intervém suas tecnologias normativas nos comportamentos sexuais, nas relações de trabalho, na segurança pública, condutas individuais e individualizadoras, nas manifestações coletivas de caráter religioso, social, cultural e político.
No fluxo de surgimento de uma nova epistéme normalizadora do cientificismo no Brasil, as interfaces discursivas entre os saberes implicados numa rede de relações entorno da cultura e ciências, construíram no contexto antropológico do século XIX as classificações raciais, a categoria e o estigma do “anormal” no qual a própria criminologia se constituíra como uma área interdisciplinar na intersecção entre medicina e direito (3).
Esses enquadramentos biotipológicos das coletividades consideradas “inferiores”, “desviadas” e “anormais” foram suscitadas no processo de cientifização das hierarquias e divisões de “tipos humanos” após a abolição da Escravatura – significa dizer que continuamos escravocratas na véspera da República – quando os negros em detrimento da condição de escravo aparece como elemento principal para a construção da nacionalidade, cujo as quais os saberes acerca da escravidão se constituíram a partir de um modelo de anormalidade, quando a racialização do discurso científico (darwinismo e naturalismo e entre outros) implicou numa racionalização das políticas públicas, condição de cidadania e da sociedade como um todo. (a “defesa social” contra os indesejáveis na belle époche)
Pensando a partir de Foucault (1987), as análises acima realizadas, podemos inferir que a sociedade disciplinar é aquela no qual a sociedade gradualmente se ordena em uma rede difusa de dispositivos e mecanismos que regulam, normatizam e normalizam os costumes, os hábitos, as intervenções sociais e práticas produtivas não dissociada da moral. Consegue-se por para funcionar essa sociedade e assegurar obediência a suas regras, leis e normas de controle e exclusão social, por meio das transformações das instituições coloniais para as instituições disciplinares: a prisão, a fábrica, o hospital, a escola, entre outras. Portanto, podemos inferir que o poder disciplinar (implícito nos documentos policiais e jurídicos do Império e da República) se manifesta nos parâmetros, esquadrinhamentos e limites do pensamento e da prática sancionando e prescrevendo os comportamentos desejáveis na dicotomização de “normais” e “anormais”, os desviantes que comprometem a ordem estabelecida (4).
Contudo, os interesses que estão na base da formação e da aplicação do direito penal no Brasil são, sobretudo, os interesses dos grupos sociais que estão no alto da hierarquia social que influem sobre os processos de criminalização, sendo assim, os interesses protegidos por meio do direito penal não são de modo algum os interesses comuns de todos os “cidadãos”.
Em suma, a criminalidade no seu conjunto de dispositivos é uma “realidade social” criada por meios de processos complexos de criminalização, ou seja, não são isentas dos interesses políticos. Podemos pensar então que o crime, os criminosos e a criminalidade são criações sociais e exercício de poder sobre aqueles que infringem, perturbam e ameaçam o ordenamento social e o “progresso” da nação no afã de entrar de uma maneira ou de outra na modernidade. (...)

Notas

(1) “A súbita equiparação legal entre negros e brancos, em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de valores que se elaborara durante todo o período colonial. Econômica, social e psicologicamente, os ajustamentos foram lentos” (VIOTTI, 1998, pp. 13-14).
(2) O chefe de polícia Eusébio de Queirós lança seus olhares de suspeitas aos africanos livres entre os minas da Corte devido a mobilidade que tinham dentro e fora das cidades do Império, preocupado com a possibilidade de novas rebeliões, solicita em seu ofício para o ministro da justiça a deportação de estrangeiros: “Existem nesta cidade alguns pretos minas daqueles cujos serviços foram aqui arrematados, mas que hoje gozam de plena liberdade, que se ocupam debaixo de outras aparências em cometer roubos e furtos de pequena importância, porém quase que exclusivamente em seduzir escravos para serem roubados. Ora, estes indivíduos, pela sua qualidade de estrangeiros, parece-me não haver inconveniente em faze-los deportar e por isso solicito de V. Exc. Autorização competente, a fim de que a polícia empregue esse castigo para com os que já por seu mau comportamento são conhecidos, mas que não podem ser processados, atenta a falta de provas. Já há tempos foram daqui para a costa da África, alguns deles voluntariamente, e é para tal lugar que, no caso de aprovação do governo, pretendo faze-los seguir. Creio que, mandando para fora do Império cerca de doze ou dezesseis, os outros se conterão” (SOARES, 2001, p. 399).
(3) Para os intelectuais do Império, a questão racial se tornou o elemento principal para se refletir os problemas da nacionalidade, passando a ser entendida como uma condição de cidadania e lugar social que distinguisse a diferença entre as raças. O problema da miscigenação neste contexto se colocava como uma preocupação com a formação do país. Foi justamente nesse período que a produção do “anormal” no Brasil e os projetos institucionais que implicavam no seu esquadrinhamento, constituiu a base das estratégias do Estado em racionalizar as políticas públicas de punição, disciplina e controle em conjunto com os critérios científicos e de saber acerca da anormalidade. Para Mozart Linhares da Silva (2003), analisando a geração de intelectuais e estadistas que pensavam as questões da nação a partir de saberes como o Positivismo, o Darwinismo, o Evolucionismo spenceriano e o Naturalismo, a questão da imigração e libertação dos escravos era visto como um problema racial: “Se o Império procurou resolver o paradoxo liberalismo-escravismo, partindo de uma legislação igualitária para iguais e, portanto, excluindo o negro da condição humana e tratando-o como res, objeto de Código Comercial e não de Civil, a geração pós-1870 colocou a problemática em termos semelhantes com a diferença de que o negro não era incorporado numa categoria jurídica da escravidão, o que o excluía da vida política, mas sim a partir de uma categoria biológica imprópria para uma sociedade de iguais ou normais. (...) Se do ponto de vista jurídico a transformação do ‘negro em escravo’ garantia a ‘normalidade’ imperial, a transformação do ‘escravo em negro’, enquanto categoria racial, reorganizava a ‘normalidade’ do ponto de vista político da exclusão” (SILVA, 2003, p. 21).
(4) Conforme Foucault, “(...) O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos produtos industriais. Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualidade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais” (FOUCAULT, 1987, pp. 153-154).

Referências

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, ed. Vozes, 1987.
SILVA, Mozart Linhares da. In: “Direito e medicina no processo de invenção do anormal no Brasil”. ____________ (org.). História, medicina e sociedade no Brasil. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2003.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. “De motins e revolução: os capoeiras e os movimentos políticos de rua”. In: __________ A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, ed. Unicamp, 2001.

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