19 de outubro de 2010

Catástrofe, Trauma e Terrorismos: A Auto-imunização Face à Indeterminação




(Foto 2: Mark Lennihan / AP Photo)
Leandro Fernandes Sampaio Santos


Este nono ano após os ataques de “11 de setembro”, foi marcado por grande turbulência na obtusa “opinião pública” e na mídia (inter)nacional a despeito de dois anúncios que se interpenetram numa mesma questão: 1) o anúncio da queima de 200 cópias do Alcorão pelo pastor fundamentalista (a) Terry Jones; 2) o anúncio da construção de uma mesquita nas proximidades do ground zero, local onde ocorreu os atentados em Nova York. Entretanto, o primeiro anúncio ganhou mais repercussão, e impulsionou Barack Obama a se manifestar em público para solicitar ao pastor que desistisse de tal ato e não queimasse o Alcorão e “escutasse os anjos bons” para evitar o desencadeamento de mais violência, pois “isso poderia ser usado como pretexto pelos extremistas para mais homicídios” e “se o plano for realizado, pode servir de incentivo para indivíduos terroristas se explodirem para matar outros", advertiu Obama.
Descrito de maneira sucinta tais efervescências, podemos problematizar e refletir com mais fecundidade  sobre a problemática e desvelar questões concernentes ao temor de Obama acerca das ameaças fervorosas do pastor Jones, sendo assim, buscar alternativas analíticas distante do imediatismo de escritores compulsivos e do espetáculo do mass-mediático.
No entanto, dedicaremos ao espanto provocado pelo anúncio de Jones o qual culminou na reação de Obama  a partir das análises de Jacques Derrida e Slavoj Žižek, as quais nos permitirá inferir algumas assertivas acerca do referido episódio.
Jacques Derrida (2004), em uma longa entrevista concedida à Giovanna Borradori, irá tratar de várias problemáticas acerca do assim chamado “11 de setembro” e destacamos inicialmente o ponto o qual o mesmo trata da incapacidade de compreensão do que seria esse acontecimento, do trauma e a “auto-imunização”. De acordo com o filósofo, não fomos capazes de compreender e explicar ainda o que seria o “11 de setembro”, esta incapacidade é tão visível que ainda não conseguimos (re)nomear e interpretar esse acontecimento e continuamos a repetir e nomear como “11 de setembro” sem sabermos o que está sendo dito e o que se está e não está se pensando sobre o que está se referindo, o que é este “imperativo aterrorizante” o qual nos dá “essa ordem ameaçadora”?
Todavia, Derrida irá questionar o que levou o “11 de setembro” ser considerado pela entrevistadora – e não somente ela – como o “maior evento” já ocorrido, para tanto o filósofo vai distinguir o “fato supostamente bruto, a ‘impressão’ e a interpretação” e, portanto, dirá que o acontecimento deu a impressão de ser um major event, “a ‘impressão’ se assemelha ‘a própria coisa’ que a produziu. Ainda que a chamada ‘coisa’ não possa ser reduzido a ela. Ainda que, portanto, o event em si não possa ser reduzido a ela”. (DERRIDA, 2004, p.98). Para tanto, para se produzir um “acontecimento maior”, não basta ter em vista o número de mortos, pois mesmo milhares de civis inocentes mortos com os atentados ao World Trade Center, os números de centenas de milhares ou milhões de mortos durante as guerras mundiais e no pós-guerra (vide a proliferação de guerras étnicas no continente africano, para ficarmos em apenas um exemplo emblemático) ao menos deram a “impressão” de serem “acontecimentos maiores” ou “catástrofes inesquecíveis”. Portanto, o filósofo francês irá caracterizar duas formas de “impressão”: a “compaixão pelas vítimas e indignação diante das mortes” (b); e a “informação interpretada, interpretativa, informada, a avaliação condicional que nos faz acreditar que este é um acontecimento maior” (Ibidem, p.99).
Um acontecimento, de acordo com Derrida, não pode ser pensado somente com vistas ao passado que aconteceu e se encerrou de uma vez por todas ou o presente que está acontecendo diante de nossos olhos, no curso histórico de cada acontecimento sempre abre feridas. Um acontecimento, sobretudo um acontecimento que por sua “magnitude” se torna um “acontecimento traumático”, a ferida continua aberta e exposta não ao medo do que aconteceu e que permaneceria na memória, mas ao “terror diante do futuro, e não só do passado”. A tragicidade do acontecimento não se dá pelo que aconteceu e/ ou pelo que está acontecendo, ao contrário, se dá pelos indícios de ameaças por vir:
É o futuro que determina a inapropriabilidade do acontecimento, e não o presente ou o passado. Ou, pelo menos se é o presente ou passado, é apenas à proporção que carrega no seu corpo o sinal terrível do que poderia ter acontecido ou talvez irá acontecer, e que será pior do que qualquer coisa que tenha já acontecido (Ibidem, p.106, grifos do autor).

A temporalidade do trauma não advém do agora e nem do agora que foi passado, mas de um “im-presentável por vir”, nas palavras de Derrida. Segundo o filósofo francês, o trabalho de luto seria possível se houvesse a “certeza” de que não existiria nada pior e mais terrível do que os ataques de “11 de setembro”, lamentar-se-ia os mortos e virar-se-ia a página, entretanto, isto ocorreria quando se tratasse de lugares alhures, distante do solipsismo americano e europeu; porém o que vimos foi um “traumatismo sem qualquer trabalho de luto” pelo fato de estarem sob a sombra da indeterminação e da possibilidade de acontecer num futuro próximo algo ainda pior. “O traumatismo é produzido pelo futuro, pelo porvir, pela ameaça do pior que está por vir, mais do que por agressão que ‘acabou e já se foi’” (DERRIDA, loc. Cit, grifos do autor). Portanto, esta ameaça se tornar maior quando o inimigo é anônimo e invisível, sua imprevisibilidade aumenta o temor na “vítima” – ou melhor, da auto-vitimização dos EUA – acerca do amanhã (c).
O filósofo esloveno Slavoj Žižek (2003), chegou por caminhos diferentes a conclusões similares a Derrida concernentes ao futuro como ameaça indeterminada de um acontecimento catastrófico:

O estado em que vivemos hoje, da “guerra ao terror”, é o estado da ameaça terrorista eternamente suspensa: a Catástrofe (o novo ataque terrorista) é considerada certa, mas ela é indefinidamente adiada – o que vier a acontecer, ainda que seja um ataque muito mais horrível do que o de 11 de setembro, não será “aquele”. E aqui é crucial que se entenda que a verdadeira catástrofe já é esta vida sob a sombra da ameaça permanente de uma catástrofe (ŽIŽEK, p.12).

catástrofe assim podemos dizer, seria o espectro do “terrorismo” indeterminado pelo futuro, o qual é negado quando é arquivado as imagens e as gravações se tornam simulacros monumentalizados, o arquivo da impressão de que “terminou” o acontecimento e a ferida foi “estancada”, o arquivo funciona como narcótico para memória o qual o curso da história é parado e congelado na mimetização contra-histórica da imagem-movimento, reinscrevendo o acontecimento no passado para tranqüilizar a “consciência” e para finalmente o luto ser possível. De acordo com Žižek, só se é capaz de suportar o real com a ficção, a ficção não como o avesso do real, mas como o cerne da realidade que se torna suportável quando a transformamos em ficção. As catástrofes do terceiro mundo que eram assistidas a distância pelo televisor como algo apartado da realidade estadunidense entrou em seus lares abruptamente, portanto, “não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade” (Ibidem, p.31). A dissimulação do temor ao terror se esvaece com a presença constante da dúvida de que o “pior ainda está para acontecer”[?] e a frustração da tentativa de superação do trauma, “todos os esforços para atenuar ou neutralizar o efeito do traumatismo (negar, reprimir, esquecer, ou superar) não passam de tentativas desesperadas de muitos movimentos auto-imunitários que produzem, inventam e alimentam a própria monstruosidade que alegam superar” (DERRIDA, op. Cit., p.109).
O apelo de Obama ao pastor Terry Jones para abandonar a ideia de cometer o ato fanático (o qual o presidente norte-americano chamou de “ato destrutivo”) da queima do Alcorão, evidencia este “terror diante do futuro”, ou seja, ao pedir para que não queime o livro sagrado do islamismo porque seria contrário aos “valores americanos” como a liberdade e a tolerância (d), não é em defesa da democracia e tolerância religiosa que está no centro do problema, e sim medo tácito do futuro fantasmagórico, a catástrofe como diria Žižek. Portanto, o relativismo cultural e o multiculturalismo, travestem o intolerável, a xenofobia e a negação da outridade em tolerância; o tolerável só é admitido em espaços delimitados sob vigilância constante na sociedade de controle democrática. A tolerância mostra sua face oculta quando o poder soberano está em risco. O traumatismo não foi superado e a indeterminação se tornou a estratégia auto-imunitária para manter um estado de exceção permanente sob a égide da “Guerra ao terrorismo”. A auto-imunidade carrega consigo intrinsecamente um “efeito perverso” que “acaba produzindo, reproduzindo, e regenerando justamente a coisa que pretende desarmar” (DERRIDA, loc. Cit.).

NOTAS

a) Quando aqui nos referimos à fundamentalismo, temos em vista as análises genealógicas de Oswaldo Giacóia, em suas palavras, “o fundamentalismo revela-se como formação reativa, mais propriamente, como alma gêmea do niilismo passivo, quando as metas e valores até então vigentes revelam sua inadequação às condições de existência, faltando no entanto a força para se desprender delas – o apego fundamentalista às tradições e aos autênticos valores primitivos é apenas reação ao sentimento de perda, não a um gesto ativo de superação. Daí a atualidade dessa genealogia e a importância de suas descobertas para o entendimento tanto da necessidade quanto da lógica dos diferentes processos que caracterizam o esgotamento da modernidade política" (GIACÓIA, 2006, p.89). Este mesmo niilismo passivo e autodestrutivo se encontra não somente no fundamentalismo ocidental da doutrina sobrevivencialista “pós-metafísica” (a busca de um mundo altamente securitário e uma vida anêmica sob os auspícios do hedonismo saudável) dos Últimos Homens, conforme as críticas provocativas de Žižek, mas também no fundamentalismo islâmico, pois “tende aparecer com mais ímpeto e visibilidade em culturas nas quais só comparativamente muito mais tarde teve início a crise de valores provocado pela modernidade, com o consequente desencantamento do mundo pela imposição da forma instrumental da racionalidade técnica" (Idem, p.90).
b) A compaixão das ajudas humanitárias aos atingidos pelas diferentes fatalidades – da guerra à catástrofes naturais – é uma das várias faces da biopolítica, e Žižek (na esteira de Agamben) com argúcia percebeu esta questão: “o Homo Sacer de hoje é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que é privado da humanidade completa por ser sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de serem os campos de concentração e os de refugiados que recebem ajudas humanitárias, ‘humana’ e ‘desumana’, da mesma matriz formal sociológica.[...] talvez os que são vistos como recipientes da ajuda humanitária sejam as figuras modernas do Homo Sacer" (ŽIŽEK, op. Cit., pp.111-112).
c) A auto-vitimização dos Estados Unidos é um estratagema do politicamente correto para dar legitimidade e autoridade àquele que fala como vítima. Portanto, todas as ações que advir desta posição vitimizadora passam a ser justificada como forma de “agir em legítima defesa” ou atacar" antes que nos tornemos vítimas novamente". “Aqui, a ironia última é que, a fim de restaurar a inocência do patriotismo americano, o establishment conservador americano mobilizou o principal ingrediente da ideologia politicamente correta que ele oficialmente despreza: a lógica da vitimização. Apoiando-se na ideia de que a autoridade é conferida (apenas) aos que falam da posição de vítima, ele se baseava no seguinte raciocínio implícito: ‘Agora nós somos as vítimas, e é isso que legitima o fato de falarmos (e agirmos) de uma posição de autoridade’" (Ibidem, pp.13-14). Contudo, a auto-vitimização é uma estratégia auto-imunitária que se fundamenta no ataque ao inimigo (mesmo que seja um inimigo abstrato sem fronteira, identificação ou rostificação como o “terrorismo”) como medida profilática.  
d) O pronunciamento de Obama seguiu com as seguintes palavras: "Se ele estiver ouvindo, eu espero que entenda que o que ele está propondo fazer é completamente contrário aos nossos valores como americanos", disse Obama. "Este país é construído na noção de liberdade e tolerância religiosa", continuou o presidente. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/796502-pastor-ameaca-reconsiderar-decisao-de-nao-queimar-alcorao-apos-acordo-ser-desmentido.shtml

REFERÊNCIAS

DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques Derrida” In: BORRADORI, Giovanna (org.). Filosofia em Tempo de Terror. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.
GIACÒIA JR, Oswaldo. “Terrorismo e fundamentalismo: faces do niilismo” In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete (orgs.) Terrorismos. São Paulo, Educ, 2006.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem vindo ao Deserto do Real. São Paulo, Boitempo, 2003.