21 de janeiro de 2010

Escravidão, Periculosidade e Segurança no Limiar da Sociedade Disciplinar no Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro no Século XIX)

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Abril/2008

A Escravidão no século XIX se constituiu a partir de uma complexa rede de relações econômicas, políticas, sociais e culturais que só podem ser entendidas mediante ao legado colonial, as imbricações entre o “Antigo Sistema Colonial” e as situações do escravo na sociedade escravocrata. Nas palavras de Emília Viotti da Costa, “a desagregação do sistema escravista na América está intimamente relacionada com a crise do sistema colonial tradicional” (VIOTTI, 1998, p. 18). Procuraremos num contexto mais abrangente como referências casos em São Paulo e Rio de Janeiro para apontar e analisar não os grandes quadros da economia escravista, pelo contrário, deteremos nos principais casos das problemáticas ligadas ao controle social, a segurança pública e os limiares da sociedade disciplinar no Brasil, tendo em vista a preocupação com os escravos e as perseguições a estes grupos sociais que eram vistos como ameaça a segurança e a ordem no Império na tentativa de criar dispositivos de defesa social e prevenção de possíveis rebeliões.
A expansão do café decorre na persistência do trabalho escravo que perdura na manutenção do regime escravista; a proibição do tráfico negreiro pela legislação britânica não foi suficiente para suprimir a utilização da mão-de-obra escrava nas fazendas de café e minimizar o controle social da escravidão nas cidades da Corte.
De acordo com Emília Viotti (1998), ocorre uma diferenciação dos processos de produção nas zonas cafeeiras entre os fazendeiros do Vale do Paraíba e os proprietários urbanos do centro e oeste paulista. Tais especificidades de cada região engendraram uma dificultosa passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, substituição que não desencadeou de forma simplificada, pois os fazendeiros não tinham os recursos para recompor a força de trabalho de trabalhadores livres e atrair os imigrantes europeus que estavam mais interessados em trabalhar em áreas com maior produtividade e devido as exigências do mercado internacional e uma economia em expansão que intensificou o comércio de escravos (alta dos preços a partir da cessação da importação de escravos africanos) no interior das zonas cafeeiras.
A herança colonial da escravidão e a continuidade multifacetada do racismo pós-abolição, da mentalidade escravista, intolerância e perseguição aos negros sob o estatuto de cidadão livre e as relações ambivalentes na sociedade, as divagações da lei como “letra morta” e justificativas da opinião pública acerca da desarticulação da ordem escravocrata (1), nos propõe possibilidades de análise das rebeldias dos cativos no Rio de Janeiro e as implicações da autoridade policial máxima da Corte e seus dispositivos de vigilância, segurança, coerção e disciplina aos escravos, libertos e segundo as terminologias empregadas pelo chefe de polícia Eusébio de Queiróz a respeito das estratégias cotidianas para enfrentar os “pretos livres”.
Os escravos e capoeiras foram fundamentais no processo de sufocamento da revolta dos soldados irlandeses na Corte, porém a situação dessas camadas sociais tornou-se ambivalente. Esta ambivalência fica evidente nos relatos de Walsh, pois ele via a importância desses grupos para “o sufocamento da insurreição estrangeira” e simultaneamente o perigo que eles representavam para a sociedade, principalmente a presença dos “moleques” e a cumplicidade na participação do escravo no combate.
A participação de escravos e capoeiras na manutenção da ordem do Império tornou-se uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo que eles ofereceram segurança aos moradores e o Estado, também passaram a ser preocupação e medo por estarem armado e em grande número podendo culminar em um novo levante (SOARES, 2001, p. 324-329).
O medo era vigente entre os administradores da Corte se caso as rebeliões que aterrorizavam as cidades viessem a incorporar a ameaça de movimentos populares na rua e a participação de negros escravos e libertos articulados às estratégias internacionais suspeitas de “haitianismo”, no qual expressava o temor das autoridades em relação às insurreições urbanas acusada na suspeição generalizada de uma possível “conspiração internacional” suscitadas pelos abolicionistas, sublevações dos escravos e africanos livres.
Ao invés de pensarmos as relações de poder como um atributo e uma apropriação conservada na posse, unificação de segmentos transcendentais na forma de “Aparelho-Estado”, amarras monolíticas e congeladas das determinações de classes, centralizações globais e esferas gerais apropriados por totalidades do poder de Estado e seus enquadramentos binários na sequência entre dominadores e dominados; podemos pensar como os escravos, libertos e livres pobres articulavam suas próprias estratégias que atravessavam segmentos locais, difuso, descentralizado, instável e não-estratificado dessa disseminação microfísica do cotidiano enquanto exercício de afetos e conjunto estratégico capilarizado que se dispõem na distribuição de singularidades; entre elas se potencializam as fugas para os quilombos, os suicídios, os abortos, a sedução de senhores e as contendas judiciais pelas alforrias e as lutas contra a prostituição de mulheres negras no convívio sócio-cultural, político-econômico, científico-jurídico e institucional.
Em suma, a compra e venda de escravos na Corte não envolvia somente assuntos restritos de preocupações econômicas, o envio de negros para o interior estava ligado também a uma questão de segurança coletiva, controle da periculosidade de insurretos no âmbito de uma cidade que pretendia diminuir os “males da Corte”, punição aos negros, sobretudo os africanos na Casa de Correção e vigilância de um espaço cada vez mais heterogêneo por conta da mobilidade de cativos que circulavam em meio a táticas e enfrentamentos múltiplos, minuciosos e desconhecidos nas relações de forças e poder (2).
Portanto, na sociedade brasileira no contexto do final do século XIX e a partir da década de 1850 começaram a se delinear transformações profundas e incisivas. As novas bases da reestruturação das relações de trabalho, a complexa organização e ampliação dos espaços urbanos, a proclamação da República e outros fatores, assinalavam as pretensões, expectativas e interesses particulares de setores específicos e certos grupos coletivos de anunciar o advento de um novo tempo.
As políticas de controle social implicadas nas propostas administrativas da organização republicana viabilizaram redimensionar rigidamente e com maior abrangência o reconhecimento e legitimidade dos protótipos burgueses em via de definição dos parâmetros pretensiosos da constituição da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização, formulando a execução de novas estratégias de disciplinarização dos corpos treinados e/ou docilizados sobre uma “ética do trabalho” e acerca de normas moralizadoras. A organização política da República intervém suas tecnologias normativas nos comportamentos sexuais, nas relações de trabalho, na segurança pública, condutas individuais e individualizadoras, nas manifestações coletivas de caráter religioso, social, cultural e político.
No fluxo de surgimento de uma nova epistéme normalizadora do cientificismo no Brasil, as interfaces discursivas entre os saberes implicados numa rede de relações entorno da cultura e ciências, construíram no contexto antropológico do século XIX as classificações raciais, a categoria e o estigma do “anormal” no qual a própria criminologia se constituíra como uma área interdisciplinar na intersecção entre medicina e direito (3).
Esses enquadramentos biotipológicos das coletividades consideradas “inferiores”, “desviadas” e “anormais” foram suscitadas no processo de cientifização das hierarquias e divisões de “tipos humanos” após a abolição da Escravatura – significa dizer que continuamos escravocratas na véspera da República – quando os negros em detrimento da condição de escravo aparece como elemento principal para a construção da nacionalidade, cujo as quais os saberes acerca da escravidão se constituíram a partir de um modelo de anormalidade, quando a racialização do discurso científico (darwinismo e naturalismo e entre outros) implicou numa racionalização das políticas públicas, condição de cidadania e da sociedade como um todo. (a “defesa social” contra os indesejáveis na belle époche)
Pensando a partir de Foucault (1987), as análises acima realizadas, podemos inferir que a sociedade disciplinar é aquela no qual a sociedade gradualmente se ordena em uma rede difusa de dispositivos e mecanismos que regulam, normatizam e normalizam os costumes, os hábitos, as intervenções sociais e práticas produtivas não dissociada da moral. Consegue-se por para funcionar essa sociedade e assegurar obediência a suas regras, leis e normas de controle e exclusão social, por meio das transformações das instituições coloniais para as instituições disciplinares: a prisão, a fábrica, o hospital, a escola, entre outras. Portanto, podemos inferir que o poder disciplinar (implícito nos documentos policiais e jurídicos do Império e da República) se manifesta nos parâmetros, esquadrinhamentos e limites do pensamento e da prática sancionando e prescrevendo os comportamentos desejáveis na dicotomização de “normais” e “anormais”, os desviantes que comprometem a ordem estabelecida (4).
Contudo, os interesses que estão na base da formação e da aplicação do direito penal no Brasil são, sobretudo, os interesses dos grupos sociais que estão no alto da hierarquia social que influem sobre os processos de criminalização, sendo assim, os interesses protegidos por meio do direito penal não são de modo algum os interesses comuns de todos os “cidadãos”.
Em suma, a criminalidade no seu conjunto de dispositivos é uma “realidade social” criada por meios de processos complexos de criminalização, ou seja, não são isentas dos interesses políticos. Podemos pensar então que o crime, os criminosos e a criminalidade são criações sociais e exercício de poder sobre aqueles que infringem, perturbam e ameaçam o ordenamento social e o “progresso” da nação no afã de entrar de uma maneira ou de outra na modernidade. (...)

Notas

(1) “A súbita equiparação legal entre negros e brancos, em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de valores que se elaborara durante todo o período colonial. Econômica, social e psicologicamente, os ajustamentos foram lentos” (VIOTTI, 1998, pp. 13-14).
(2) O chefe de polícia Eusébio de Queirós lança seus olhares de suspeitas aos africanos livres entre os minas da Corte devido a mobilidade que tinham dentro e fora das cidades do Império, preocupado com a possibilidade de novas rebeliões, solicita em seu ofício para o ministro da justiça a deportação de estrangeiros: “Existem nesta cidade alguns pretos minas daqueles cujos serviços foram aqui arrematados, mas que hoje gozam de plena liberdade, que se ocupam debaixo de outras aparências em cometer roubos e furtos de pequena importância, porém quase que exclusivamente em seduzir escravos para serem roubados. Ora, estes indivíduos, pela sua qualidade de estrangeiros, parece-me não haver inconveniente em faze-los deportar e por isso solicito de V. Exc. Autorização competente, a fim de que a polícia empregue esse castigo para com os que já por seu mau comportamento são conhecidos, mas que não podem ser processados, atenta a falta de provas. Já há tempos foram daqui para a costa da África, alguns deles voluntariamente, e é para tal lugar que, no caso de aprovação do governo, pretendo faze-los seguir. Creio que, mandando para fora do Império cerca de doze ou dezesseis, os outros se conterão” (SOARES, 2001, p. 399).
(3) Para os intelectuais do Império, a questão racial se tornou o elemento principal para se refletir os problemas da nacionalidade, passando a ser entendida como uma condição de cidadania e lugar social que distinguisse a diferença entre as raças. O problema da miscigenação neste contexto se colocava como uma preocupação com a formação do país. Foi justamente nesse período que a produção do “anormal” no Brasil e os projetos institucionais que implicavam no seu esquadrinhamento, constituiu a base das estratégias do Estado em racionalizar as políticas públicas de punição, disciplina e controle em conjunto com os critérios científicos e de saber acerca da anormalidade. Para Mozart Linhares da Silva (2003), analisando a geração de intelectuais e estadistas que pensavam as questões da nação a partir de saberes como o Positivismo, o Darwinismo, o Evolucionismo spenceriano e o Naturalismo, a questão da imigração e libertação dos escravos era visto como um problema racial: “Se o Império procurou resolver o paradoxo liberalismo-escravismo, partindo de uma legislação igualitária para iguais e, portanto, excluindo o negro da condição humana e tratando-o como res, objeto de Código Comercial e não de Civil, a geração pós-1870 colocou a problemática em termos semelhantes com a diferença de que o negro não era incorporado numa categoria jurídica da escravidão, o que o excluía da vida política, mas sim a partir de uma categoria biológica imprópria para uma sociedade de iguais ou normais. (...) Se do ponto de vista jurídico a transformação do ‘negro em escravo’ garantia a ‘normalidade’ imperial, a transformação do ‘escravo em negro’, enquanto categoria racial, reorganizava a ‘normalidade’ do ponto de vista político da exclusão” (SILVA, 2003, p. 21).
(4) Conforme Foucault, “(...) O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos produtos industriais. Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualidade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais” (FOUCAULT, 1987, pp. 153-154).

Referências

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, ed. Vozes, 1987.
SILVA, Mozart Linhares da. In: “Direito e medicina no processo de invenção do anormal no Brasil”. ____________ (org.). História, medicina e sociedade no Brasil. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2003.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. “De motins e revolução: os capoeiras e os movimentos políticos de rua”. In: __________ A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, ed. Unicamp, 2001.

19 de janeiro de 2010

A Emergência das “Classes Perigosas”: Medicalização e Criminalização da Pobreza no Contexto da Transição do Império à Primeira República

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Julho/2008

Com a chegada da corte portuguesa nos trópicos a capital do Império foi transferida para o Rio de Janeiro, lugar esse marcado por uma vislumbrante paisagem geográfica que incitava – e ainda incita – o imaginário coletivo da “cidade maravilhosa”; transferência de capital não significava somente uma mera mudança territorial, mas também de novas condições sociais por ser agora centro cultural, político e econômico do território brasileiro. “É no Rio de Janeiro que se desenrola o ‘paradoxo fundador’ da história nacional brasileira” (ALENCASTRO, p.10).
O século XIX foi um período que marcou profundamente o que mais tarde tornar-se-ia o Brasil. Durante o Império passamos por crises econômicas agravadas, em maior ou menor grau, pelas campanhas de Independência e as guerras externas – principalmente a Guerra do Paraguai – e seus influxos afetaram a produção de açúcar, tabaco, algodão e couro propiciando um endividamento com as potências industriais – sobretudo a Inglaterra – e o país continuou a comprar produtos manufaturados sem equilibrar a balança comercial com nossas matérias-primas.
No século XIX vemos emergir a “Jovem República” que se “liberta” das vísceras do “arcaico” imperial e da escravidão, os republicanos têm pressa em afirmar o Brasil como “moderno” e integrá-lo no rol das “nações modernas”, esta pretensão em ser “moderno” irá marcar profundamente os eventos e as experiências de e em nosso país.
A distinção social, cultural e econômica é um elemento fundamental neste contexto de “modernização” do Brasil, o governo agora se instala em sedes mais luxuosas e as camadas mais abastadas da sociedade urbana perambulam pelas áreas centrais desfilando com as últimas modas de Londres e Paris esbanjando elegância e soberba – mas também com muito incômodo pelo simples fato destas roupas não ser adaptadas aos trópicos – pela famosa Rua do Ouvidor. Novos hábitos penetram no cotidiano das elites locais e, a ânsia e compulsão de se distinguir na hierarquia social e da experiência do passado imperial com roupas da moda, jóias, maquiagens, perfumes e o emblemático piano, as mudanças também ocorreram no vernáculo e na negação do “outro”, mais precisamente o português que representaria o império, para ficarmos em alguns exemplos (1).
A crença no “progresso” correlacionada aos avanços médicos e científicos impulsionou a nova capital da república a travar duros combates às “doenças” de todos os tipos, as “enfermidades” – podemos destacar a criminalização, patologização e marginalização do pobre – seriam os principais desafios para sua consolidação e seu ingresso aos “novos tempos”, a Belle Époque. O novo regime ainda não teve tempo para se “modernizar” (2), ainda é constatável as ruas estreitas, vielas sujas, becos onde acumulam lixos e propiciam a ladinagem; não há uma racionalização urbanística do espaço, ou seja, não há paisagismos nas praças públicas, pavimentos de paralelepípedos ou sem pavimentação, calçadas diminutas e esburacadas; o tráfego da cidade constitui-se de charretes, carroças puxadas por cavalos, e com avançar dos anos surgiriam os bondes circulando pelas ruas em uma grande malha férrea urbana; os grandes sobrados vão se transformar em bares, lojas, oficinas, cortiços e cabarés, e a maioria deles (quase todas as casas e estabelecimentos) não tinham condições sanitárias básicas e janelas nos quartos para ventilação, o que será “prato cheio” para os higienistas.
A população que vivia nas ruas, em sua maioria de negros e mestiços, desempenhava inúmeros trabalhos, poderia ser: costureiro, fabricante de vassouras, vendedor ambulante, carregador de pianos, etc.; os principais trabalhos das mulheres eram doceira, sorveteira, doméstica que levavam grandes quantidades de roupas em bacias em busca de água no chafariz ou rios próximos da casa do patrão – locais estes de intensa sociabilidade – e, não podemos nos esquecer da prostituta. Outros grupos enquadrados na época como “indesejáveis” eram os imigrantes pobres, os capoeiras, os taxados de “desocupados” e andarilhos que perambulavam pelas ruas em busca de qualquer serviço que lhes renda alguns “trocados” (Idem, Ibidem). Todas estas personagens de alguma forma necessitavam habitar, alimentar e beber um gole para animar-se e esquecer dos próprios infortúnios, os bares, os botequins e os quiosques serão âmbitos fundamentais para encontro desses indivíduos, locais onde possam se sociabilizar e se (re)territorializar.
Entretanto, estes lugares ofereciam condições de “higiene” mínima, os insetos são constantes infestando o local, os restos de alimentos atraem mendigos, cachorros e ratos e, no olhar do higienista e de outros das camadas mais abastadas da sociedade, tais locais “enfeiam” e “emporcalham” a cidade, seriam focos de produção e disseminação de doenças juntamente com os cortiços, seriam todos redutos das “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996) – são estes lugares que serão criminalizados e patologizados e seus moradores e freqüentadores se constituíram como problemas emergentes (3) –, “indesejáveis” a serem expulsos, presos, medicalizados ou eliminados.
Em meados do século XIX e início do século XX, a questão da salubridade dos espaços urbanos se tornara emergente para as diversas autoridades públicas como uma preocupação e dever previdenciário de erradicação das doenças epidêmicas nos territórios citadinos. Neste contexto, as reformas urbanas sofreram intervenções de ordem profiláticas (profilaxia territorial e populacional – cabe destacar a introdução de projetos eugênicos e as estigmatizações biológico-raciais), políticas higienistas e sanitárias rígidas nas quais passaram a serem exercidas como medidas preventivas contra os ambientes e sujeitos insalubres, focos de epidemias e sobre as “emanações miasmáticas” (4).
Segundo Sidney Chalhoub (1996), a “ideologia da higienização” das cidades sustenta os dispositivos de exclusão e segregação sócio-espacial através de justificativas de invasão e eliminação das habitações coletivas e, grande parte das moradias das camadas pobres estava sujeitas a extinção, cuja visão do poder público é tida como “classes perigosas” e “infecciosas” devendo passar pelos mecanismos de suspeição e inspeção generalizada de controle social dos trabalhadores, repressão à ociosidade, não somente a suspeição, mas também a criminalização e patologização das classes pobres.
Não é uma simples eventualidade a construção ideológica de “classes perigosas” análoga à noção de “classes pobres”, portanto, não se restringe somente a um problema de desordem social que estavam por trás desta noção, mas principalmente o perigo do “contágio”, a pobreza como doença ontológica, moral, social e epidemiológica de vícios e doenças passada de geração a geração através da exposição dos filhos aos “males” dos pais advindos destas “classes”. Um dos principais contágios morais combatidos era a ociosidade, Sidney Chalhoub mostrá-nos duas etapas desta estratégia, “mais imediatamente cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adultos o mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores” (Ibidem, p. 29). Por outro lado, um dos principais combates profiláticos ao perigo de contágio infeccioso era contra a habitação das “classes pobres”, segundo o diagnóstico dos médicos higienistas, era por se tratar de uma habitação coletiva de pobres e disseminador de epidemias que afligiria toda sociedade.
Contudo, para os higienistas a habitação era a causa etiológica do problema em três níveis: primeiro, por ser a moradia dessas “classes” o local de grande concentração de pobres, como o cortiço cabeça de porco o qual moravam cerca de 4.000 moradores (5); segundo os higienistas, estes lugares eram os principais focos de propagação de doenças infecciosas, ocasionados pela falta de “higiene” e pela própria “natureza” – principalmente dos negros – doentia e patológica; terceiro, a proliferação de “vícios” e “más condutas” (a inexistência de virtudes) de dentro das habitações para os locais públicos. As “classes perigosas” constituíam um “perigo social” em triplo sentido, portanto, “justificativas” suficientes para se tornarem alvo de perseguição e “suspeição generalizada”.
A adesão a noção de “classes perigosas” surge na história do Brasil a partir da desagregação da sociedade tradicional, bem como na paulatina desarticulação do trabalho escravo na sociedade brasileira e no processo de republicanização, portanto, sua recepção pode ser compreendida no ponto do surgimento de preocupações subseqüentes à situação de “libertos”, em que se encontram os escravos pós-abolição por parte das autoridades públicas, sobretudo, por sua presença e circulação nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro; medos que se articulam a “perda” do papel social dos escravos, ou seja, seu eminente estado de anomia frente à recomposição da ordem, suscitada pela nova sociedade que aos poucos se delineava, propiciando assim, a emergência da “suspeição generalizada”, outrossim, a atualização de novas relações de poder, as quais, por sua vez, obedeciam às técnicas visuais e de visibilidade inéditas, que assistiria à falência do estatuto de mercadoria prevista ao negro na sociedade colonial e imperial. Deste modo, a ensejar as novas cifras das “periculosidades” – ou em outro termo criminológico da época, as “perigosidades” – através de traços físicos, características morfológicas e fenotípicas, conferindo autêntica tônica na visibilidade dos corpos sob os quais se podia efetivar a “natureza” potencial e virtualmente de futuros criminosos.

Notas

(1) Para maiores detalhes acerca das disparidades lingüísticas e das mudanças de hábitos e comportamentos advindas da introdução de bens de consumo no Brasil leiam: Luís Felipe de Alencastro “Vida privada e ordem privada no Império” In: História da Vida no Brasil Vol. 2, São Paulo, Cia das Letras.
(2) Segundo Raymundo Faoro a “modernidade” se diferencia de “modernização”, pois a “modernidade” seria um processo que envolve toda a sociedade transformando suas camadas e modificaria ou extinguiria os papeis sociais hierarquizados; a “modernização”, ao contrário, não se dá involuntariamente no processo histórico, seria um processo forjado por um determinado grupo social privilegiando-se ou privilegiando as camadas mais abastadas, “(...) procura moldar, sobre o país, pela ideologia ou pela coação, uma certa política de mudança. Traduz um esquema político para uma ação, fundamentalmente política” (FAORO, 1992, p-8).
(3) Para lidar e tentar eliminar de vez com estes problemas, foi preciso uma força conjunta que se chamou de “tripla ditadura”. “As autoridades conceberam um plano em três dimensões para enfrentar todos estes problemas. Executar simultaneamente a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma urbana. Um time de técnicos foi então nomeado pelo presidente Rodrigues Alves: o engenheiro Lauro Mülher para a reforma do porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz para o saneamento e o engenheiro urbanista Pereira Passos, que havia acompanhado a reforma urbana de Paris sob o barão de Haussmann, para reurbanização” (SEVCENKO, 2008, pp. 22-3).
(4) Vale salientar as divergências teóricas em torno das enfermidades, para citarmos dois exemplos no bojo do higienismo, as discrepâncias que ocorriam entre os contagionistas e os anticontagionistas, estes últimos chamados de infeccionistas. A primazia do segundo grupo sobre o primeiro na segunda metade do século XIX se deu não somente pelo caráter de cientificidade, mas também por corresponder à lógica progressista comercial e industrial, pois o princípio de quarentena dos contagionistas seriam barreiras burocráticas para o desenvolvimento econômico, “tornaram-se suspeito aos apologistas da ideologia liberal interessados estes na superação dos entraves ao livre desenvolvimento das relações de comércio” (CHALHOUB, 2006, p.170). Os infeccinistas por sua vez, afirmavam que as doenças eram conseqüências de inúmeros fatores que agem conjuntamente sobre a vida influenciando diretamente na evolução da infecção e, os diferentes modos de vidas (desde hábitos de higiene a habitação) demonstravam vulnerabilidade e a propensão das camadas pobres a se adoecer, contudo, teriam que combater as “emanações miasmáticas” (Ibidem, p.64) modificando radicalmente as condições habitacionais e de vida desta população, sendo assim, atendia diretamente aos objetivos das elites locais concernentes aos seus ideais de “progresso”.
(5) Conforme Sidney Chalhoub, “(...) Há controvérsia quanto ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; (...) a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época, porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local” (Ibidem, p.15).

Bibliografia

ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Introdução: modelos da história e da historiografia imperial”; “Vida privada e ordem privada no Império” In: _________ (org.) História da vida privada Vol. 2, São Paulo, Cia das Letras.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estud. av. [online]. 1992, v. 6, n. 14, pp. 7-22. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/ v6n14/v6n14a02.pdf Acessado em: 29 de junho de 2008.
SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada Vol. 3, São Paulo, Cia das Letras, 2008.

República Velha e Ambiguidade: Inclusão-excludente das Camadas Populares e Suas Tradições do Centro Urbano Carioca

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Setembro/2008

Para pensarmos o Brasil da República Velha, partiremos de um contexto mais amplo a partir de Nicolau Sevcenko (2008) que faz uma análise sobre a formação histórica brasileira no interior das transformações ocorridas durante o expansionismo da economia política e do neocolonialismo em contexto globalizado da industrialização que irrompe com maior intensidade a partir da revolução científico-tecnológica no decorrer da segunda metade do século XIX.
Essa dinâmica da expansão global do mercado capitalista fez com que as novas tecnologias produzidas cientificamente modificassem em ritmo acelerado o cotidiano das pessoas e seus costumes penetrando na subjetividade, transformando o modo como concebem a sua própria intimidade e experiências coletivas.
O Rio de janeiro, a então capital da Primeira República, passou por grandes transformações sociais, culturais, políticas e econômicas antes mesmo da Proclamação da República nos últimos suspiros do Império com a abolição da escravidão. Estes dois acontecimentos paradigmáticos (poderíamos destacar inúmeros outros como, por exemplo, o episódio da Guerra de Canudos, mas nos deteremos nestes dois eventos para abordarmos um quadro geral) ocasionaram profundos impactos de fundamental importância para pensarmos a República Velha (CARVALHO, 1987).
Essas transformações se deram de modo significativo com a reforma e “regeneração” – eliminar os males e os elementos “degenerativos” que atrapalhavam o “progresso” – impostas pelas novas sanções, normas e concepções urbanísticas racionalizante e tecnocrática. A presença de indivíduos das camadas populares nestes locais remodelados e higienizados (1) era vista com repugnação e sofriam perseguições policiais induzindo-os ao afastamento voluntário e gradativo, quando não expulsos imediatamente do centro da cidade, entretanto, isto não ocorria de forma absoluta, muitos desviantes conseguiam escapar da vigilância e permanecer, mesmo que precária e provisoriamente, em locais proibidos aos pobres. Portanto, é evidente nestas práticas de vigilância seletiva a ideia de que o centro era exclusivo para certos grupos sociais elitistas e excludentes as camadas pobres da sociedade, o centro com suas novas arquiteturas e equipamentos urbanos modernos eram desfrutados somente por estes mesmos grupos sociais e, o restante da população deveriam se contentar e se restringir às áreas suburbanas e periféricas (2).
Esta lógica exclusivista e excludente das áreas centrais da República Velha não foi aceita facilmente e passivamente como pretendiam os setores mais abastados da capital. Estes espaços urbanos eram territorialidades marcadas tradicionalmente pela cultura popular e pela circulação de indivíduos a ela pertencente, isto era evidenciado principalmente no período de carnaval o qual incorporava diversas personagens desta manifestação sociocultural, tal manifestação era ambígua, pois era um mecanismo de exclusão pela inclusão aparente (ou uma inclusão excludente) e, aos poucos, foi utilizado como estratégia no esforço conjunto das elites e do governo oligárquico republicano em conter e deter aqueles que pela “suspeição generalizada” (3) faziam parte das “classes perigosas”. Nesta nova lógica de modernização e exclusão “as classes populares vislumbravam na modernidade algumas brechas que lhes oferecessem, alguma oportunidade de ascensão social” (SEVCENKO, 2008).
A rejeição dos negros, ex-escravos e libertos, bem como a maioria dos homens e mulheres populares no ingresso da convencionada República Velha advêm, sobretudo, de fenômenos inéditos e mais amplos da sociedade brasileira, em nosso caso específico ocorridos no Rio de janeiro, a partir da segunda metade do século XIX, aos quais passariam paulatinamente caracterizar os jogos das relações sociais e de poder no Brasil, cuja expressão maior vislumbra-se especialmente no perverso nexo estabelecido entre república e modernidade, concebido mediante a emergência de novas ópticas concernentes às percepções dos espaços urbanos e da gestão da esfera pública. Implicações entre vistas nos rumos que a política pública se orientaria desde então.
Tais problemas foram elucidados por Nicolau Sevcenko ao usar a expressão “regeneração” (4), experiências intensificadas na tacanha regulamentação dos costumes e das condutas, potencializadas pelo epíteto aburguesador das sociabilidades e subjetividades, que a título de demonstração, o carnaval é emblemático, o esvaecimento do significado popular, múltiplo e coletivo da festa para adesão do modelo comedido de Veneza (Idem, pp. 26-27).
O samba nas primeiras décadas do século XX seria marcado por ambivalências na sensibilidade estética oscilando entre o repúdio e o enaltecimento, entre a aceitação e a opressão; aceitação da melodia e harmonia musical (5) e opressão da vagabundagem e da desocupação permanente associados ao samba e outras expressões populares. Estas ambivalências estão relacionadas às grandes problemáticas dos intelectuais que ocupavam cargos governamentais da época perante os desafios para constituição paradoxal do “corpo político” da Primeira República.
Podemos observar por um lado os critérios darwinistas sociais e positivistas que consideravam uma “pedra no caminho” à plena aceitação do negro na esfera pública que durante todo o processo de republicanização do Brasil ficaram à margem, por outro lado, as tradições culturais populares, principalmente negras (6) associadas à malandragem (que posteriormente se tornaria no tema predileto dos cantores populares), discriminadas e taxadas como “primitivas” e sinal de “atraso” na tão almejada “modernização” do Brasil e eram, ao mesmo passo, considerados parte constituinte da expressão da cultura nacional, como o caso do samba, o qual foi apropriado e traduziu-se em uma tentativa de invenção mitêmica da simbologia popular por parte das elites que buscavam subsídios na cultura popular para dar legitimidade política ao então “novo” regime republicano (SEVCENKO, 2008, p.21; CARVALHO, 1987, p.41).

Notas

(1) Umas das principais mudanças ocorridas nos primórdios da República foram concernentes a demografia “em termos de número de habitantes, de composição étnica, de estrutura ocupacional. A abolição lançou o restante da mão-de-obra escrava no mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. Além disso, provocou um êxodo para a cidade proveniente da região cafeeira do estado do Rio e um aumento na imigração estrangeira, especialmente de portugueses” (CARVALHO, 1987, p. 16).
(2) A distinção que se dava dicotomicamente entre as elites locais e as camadas pobres se expressava no campo visual pelas vestimentas seguido dos hábitos e comportamentos sob o signo do estigma social. “Como corolário, as pessoas que não pudessem se trajar decentemente, o que implicava, para os homens, calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e chapéus, tinham seu acesso proibido ao centro da cidade” (SEVCENKO, 2008, p.26).
(3) Termo este cunhado por Sidney Chalhoub (1996).
(4) “A atmosfera da ‘regeneração’ era o correspondente brasileiro desse surto amplo de entusiasmo capitalista e da sensação entre as elites de que o país havia se posto em harmonia com as forças inexoráveis da civilização e do progresso” (SEVCENKO, 2008, p. 34).
(5) “A produção racional da música para o mercado teria que se acomodar ao roubo do direito autoral, ao plágio, à compra de música de compositores desconhecidos por parte de cantores famosos, ao suborno das estações de divulgação, e assim por diante” (VASCONCELLOS, 1984, p. 508).
(6) “Quando o escravo conquista o direito (e a necessidade) de vender sua força de trabalho, estamos diante de um momento decisivo: a voz do negro adquire uma posição que modifica profundamente a composição cultural brasileira. A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito que ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonâncias nas nervuras da sociedade” (Ibidem, p. 504).

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Cia das Letras, 1987.
SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In: ________(org.). História da vida privada Vol. 3, São Paulo, Cia das Letras, 2008.
VASCONCELLOS, Gilberto. “A malandragem e a formação da música popular brasileira” In: FAUSTO, Boris. História geral da civilização brasileira III. O Brasil republicano Vol. 4: Economia e cultura (1930-1964). Difel, 1984.

Raça e Etnia, Ciência e Humanidades: Múltiplas Implicações


Grupo de Estudos e Pesquisas

Equipe:

Coordenação e Organização: Leandro Fernandes Sampaio Santos e Andrews Correia de Amorim

Pesquisadores e Colaboradores: Leandro Fernandes Sampaio Santos e Andrews Correia de Amorim.

Criado em 2007 inicialmente por historiadores, o grupo de estudos e pesquisas procura investigar as múltiplas implicações decorrentes das articulações e entrelaçamentos das categorias de “raça” e etnia entre os diferentes saberes das ciências naturais e biológicas e das ciências humanas e sociais do ponto de vista das Humanidades e suas análises das invenções, transformações, rupturas, readequações, permanências, variações e críticas do conceito de “raça” e das classificações raciais, étnicas e sociais estigmatizadas em diferentes matizes, seja nos discursos e/ ou nas práticas sociais, culturais, políticas, científicas e institucionais. Todavia, no caso brasileiro, o racismo não se restringe somente a uma herança do passado escravista, mas ele persiste mascarado de variadas formas e se metamorfoseando segundo relações de poder, interesses e estratégias particulares de setores específicos e certos grupos coletivos e não homogêneo da sociedade brasileira. Portanto, as inúmeras classificações raciais de tipos humanos e de coletividades consideradas “desviantes”, “inferiores”, “perigosas” e “anormais” carregam consigo hierarquizações e divisões de profundos significados sociais, culturais, políticos, jurídicos, médicos, científicos e econômicos se desdobrando de múltiplas formas e repercutindo em práticas discriminatórias e preconceituosas que perduram de formas multifacetadas em nosso cotidiano atual. Entretanto, são imprescindíveis investigações e análises históricas e epistemológicas da constituição do saber e do campo científico na modernidade, assim como das assim chamadas “ciências do homem”. As análises resultantes dos estudos e pesquisas objetivam compreender não somente questões locais, mas também questões e problemas globais privilegiando enfoques multidisciplinares das “ciências” humanas e sociais.

Linhas de Pesquisas:

1- Raça, Nacionalismo, Etnonacionalismo e Identidade Nacional
2- A questão racial nos Regimes Totalitários e Ditatoriais
3- Etnicidade, Cultura e Imaginário
4- Cientificismo, Higienismo e Eugenismo: Os Dispositivos de Controle e Normatização
5- Globalização, Mundialização e Multiculturalismo
6- Gênero, Sexualidade e Corpo: A Subjetivação do Racismo
7- Geopolítica, Terrorismo e Xenofobia: Novas Configurações das Guerras Contemporâneas
8- Raça, Ciência, Genética e Bio(nano)tecnologias no contexto Biopolítico

Projetos e Atividades

Projeto de Pesquisa:

Raça e Etnia, Ciências e Humanidades: Investigações Históricas e Historiográficas.

Objetivos gerais: Problematizar, analisar e discutir os conceitos e representações de raça e etnia na produção científico-acadêmicas e no imaginário sociocultural historicamente constituídos, assim como os discursos médicos e jurídicos associados às políticas públicas de controle social através de variadas ópticas provocando reflexões conceituais, teóricas e históricas, possibilitando assim, estudos inter e multidisciplinares acerca do assunto.
Objetivos específicos: Pretende-se com estas pesquisas e estudos possibilitar aos participantes novos “olhares” e abordagens acerca da questão “racial” através de problematizações históricas e conceituais fora do jargão convencional acerca do assunto e da dicotomia maniqueísta simplificadora da complexidade e multiplicidade inerente às temáticas escolhidas por meio de uma bibliografia múltipla (bibliografias atuais e “clássicas” sobre as linhas temáticas do projeto), sendo assim, estimular por meio da investigação histórica e multidisciplinar reflexão intensa do presente e entendimento próprio da realidade e dos problemas sociais, culturais e políticos que o circunda. Tais problemáticas serão analisadas por meio de fontes documentais diversificadas e discutidas através de problematizações históricas não lineares procurando diálogos multidisciplinares. O projeto está divido em três módulos articulando as linhas de pesquisas do projeto conforme cada temática, cada qual se referindo a contextos históricos díspares – não se restringirá a uma cronologia factual – para melhor compreendermos a historicidade das categorias “raça” e etnia e suas transformações e constituições.

Atividades, Metodologias e Procedimentos:

• Organização, interpretação e análises de fontes primárias e/ ou secundárias;
• Levantamento bibliográfico e na internet;
• Discussão de temas selecionados, debates e trabalhos em grupo e/ou individual;
• Interpretação e análises iconográficas e audiovisuais;
• Estudo, leitura, apresentação e produção de relatórios, textos, artigos, pesquisas, entre outros;
• Organização de seminários e reuniões temáticas para acompanhamento dos avanços e resultados das investigações empreendidas.

1°Módulo: Da Degeneração à Salvação da Nação: As Múltiplas Construções da Brasilidade e Identidades Nacionais.

“Raça”, “nação” e “degeneração” – Literatura e Ciência – Naturalismo e Romantismo – Evolucionismo, Determinismo e Positivismo – Abolição e o escravo negro: os paradoxos da “liberdade” – O “Cruzamento racial” e a condenação da “mestiçagem” – A “miscigenação” como solução para a construção da nação – Os limiares da antropologia e historiografia brasileira – Os institutos históricos e geográficos – Etnias e a Hierarquização das raças: imigração no Império – O ideal do branqueamento – O anti-semitismo no Brasil – Indigenismo: “civilizar” e “proteger” o indígena – Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, algumas problemáticas de seus legados (“Democracia Racial” e a “Nova Roma”) – Totalitarismos: fascismo, nazismo e socialismo – Um breve histórico do pensamento racial na América Latina;

2°Módulo: Do Saber-Poder Médico e Jurídico ao Controle e Racionalização do Espaço Urbano e População: Perigosidades e Defesa Social na Invenção da Modernidade Brasileira.


Higienismo e Sanitarismo – Medicalização, ordenação e normatização do espaço urbano – Racismo e imigração: os indesejáveis e o perigo amarelo na Primeira República – Eugenia, Psiquiatria e Criminologia: “melhoramento da raça”, patologização da sociedade e o refugo humano – A LBHM – Criminalização das raças e dos pobres – “Loucos”, mendigos, “vadios”, “vagabundos”, “leprosos” e meretrizes – Hospício, Prisão, Manicômio Judiciário, Asilo e Hospital de isolamento – Dispositivo de raça na intervenção e bio-regulamentação do corpo e da população – Estratégias e estratagemas de moralização na Sociedade Disciplinar – Trabalho fabril em ambiente Febril –Normatização do proletário e a otimização da família operária – A criança “anormal”: o inassimilável a educação normativa – “Venenos Sociais”, policiamento e vigilância – Medicina Social e Medicina Legal – Meretrício, crimes sexuais, sexualidade criminosa e delito de infecção – Gênero, raça, saúde e sexualidade – Família, matrimônio, incesto e onanismo – Cultura, ciência e saber sobre o corpo feminino – Dicotomia dos gêneros e polarização dos sexos – A moralização da conduta feminina: o aprisionamento do corpo e do desejo.

3°Módulo: Racialização da Política, Constitucionalização do Racismo e Biopolítica: Tecnologia, Genética, Democracia, Guerra Local-Global na Reinvenção Raciológica da Contemporaneidade.

Discurso racial na situação atual brasileira – Globalização, xenofobia e xenofilia – A persistência do maniqueísmo raciológico – Racismo e pré-conceito racial – Quando a cultura se confunde com a “raça” ou a Bio-identidade – Corpo, “raça” e sexismo – “Racismo” agora é lei? – Universidades e as “cotas raciais” – Vitimização, revanchismo e historicismo – Perseguições e censura: “neoracismo” e intolerância – Desafios e Abismos do Multicuturalismo – Fundamentalismo e terrorismo: as estratégias geopolíticas – Império, biopolítica e as Guerras étnicas – Genética e Nanotecnologia: implicações biopolíticas – Eugenia neoliberal e antropotécnica.

Roteiro de abordagem às temáticas propostas

“A pesquisa aqui empreendida implica, portanto, o projeto deliberado de ser ao mesmo tempo histórica e crítica (...). O que conta nas coisas ditas pelos homens não é tanto o que teriam pensado aquém ou além delas, mas o que desde o princípio as sistematiza, tornando-as, pelo tempo afora, infinitamente acessíveis a novos discursos e abertas à tarefa de Transformá-los”. (Michel Foucault, “Nascimento da Clínica” - 1963).

Para iniciarmos, gostaríamos de salientar que os conceitos ou terminologias de “raça” e etnia não são dados “naturais” e, conseqüentemente não estão traçados numa predestinação da “natureza humana”, ao contrário, são construtos do homem. Dizer que tais conceitos são construções humanas, assim como as religiões, os mitos, as ciências, as “ideologias” e o próprio conhecimento são invenções.
Ao abordarmos “raça” como palavra e/ ou conceito, queremos dizer que tal palavra ou conceito é resultado do conhecimento ou de um saber, portanto em um determinado contexto, em um determinado ponto do tempo e de uma localidade do mundo tal palavra, termo e/ ou conceito foi inventado, e dizer que “raça” é uma invenção é justamente para não dizer origem, pois dizer que “raça” tem um Arké é recair em pressupostos metafísicos e que tal classificação já estava dada de antemão. A palavra “raça” não somente tornou-se um conceito é também um ideal, outrossim, o ideal não tem origem ele é fabricado, ou seja, através de obtusas e obscuras relações de poder que as raças foram inventadas:
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana... o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este algo é o conhecimento (FOUCAULT, p.16, 2005).
Os conceitos e as classificações são construções do conhecimento, este último por sua vez, é uma invenção humana, resultado das relações de forças e do combate de homens entre homens e do homem entre as adversidades, provisoriedade, imprevisibilidade, incertezas, enfim, a múltipla diversidade que o circunda.
Após estas considerações acerca do conhecimento, os conceitos, assim como o de “raça”, têm seu campo epistemológico e semântico e uma dimensão histórica, temporal e espacial em constante mobilidade, variando no tempo e no espaço, de contexto para contexto. Pensando etimologicamente, não há um consenso à etimologia da palavra “raça”, italiano razza, que por sua vez veio do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie (MUNANGA, 2003) ou do latim radix, significando tronco; ou do italiano razza, significando linhagem, criação. A Botânica e a Zoologia, empregou o conceito de raça no século XVIII para classificação de vegetais e animais, (Um grande exemplo disso é Carl Von Linné, ou Lineu). Na antropologia os critérios morfológicos foram adotados para classificar as diversidades de populações de continentes diferentes em “raças”, Johann F. Blummenbach (1752-1840), elaborou sua teoria distinguindo os homens em cinco “raças”: caucasóide, mongolóide, etiópica, americana e malaia (PENA, 2006); segundo Blummenbach a “raça” caucasóide era o modelo perfeito, referia-se ele aos habitantes do Cáucaso, sendo esta classificação mais abrangente, pois incluía não somente os europeus, mas como os “nativos” da África do Norte, Índia e Oriente Médio (aqui percebemos que o conceito de “raça” na segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, não era homogêneo).
A invenção das “raças”, assim como as suas classificações foi uma maneira de sistematizar através da “razão esclarecida” o conhecimento, portanto, o saber se operacionalizava, partindo de dados empíricos (biológicos e físicos) para deixar de ser puramente abstração do pensamento. Doravante no século XIX, eclodiram inúmeras teorias raciais biocientíficas cada qual procurava identificar bases congênitas para legitimação política, econômica e cultural, mas também da própria ciência. A título de exemplificação, Joseph Chamberlain justificava através da ciência, a expansão colonial inglesa, “entoava um hino imperialista à glória dos ingleses”, povo este “superior” aos demais povos e tinha a missão de mostrar aos “povos subalternos” o caminho para “civilização”. A “civilização” dava legitimação não somente econômica e politicamente, mas também moral e biologicamente imbuídos de um processo aculturador. Na Índia, grupos étnicos inteiros foram taxados de “tribos criminosas”, assim lidimava “uma intervenção cuja finalidade era substituir os costumes tradicionais e a jurisprudência vigente pela legislação colonial. De sorte que eram definidos como ‘criminosos’ homens e mulheres que não tinham de maneira nenhuma rompidos com os grupos sociais a que pertenciam” (FERRO, 1996).
A hierarquização e classificação dos homens e mulheres em “raças”, proporcionou o nascimento de "pseudo-ciências" como a frenologia, a craniologia, antropologia criminal e a raciologia, esta última foi difundida no limiar do século XX e ganhou lugar nos espaços “científico”, esta doutrina mascarada cientificamente, supostamente pretendia de explicar a multiplicidade étnica dos homens, mas o seu surgimento era profundamente marcado pelo desejo de lidimar a dominação e superioridade racial. A criação de uma nova tipologia racialista totalizadora e hierarquizante, dividiu os homens em três grandes categorias raciais: “brancos”, “negros” e “amarelos” (um pouco depois foi acrescida a estas categorias a “raça americana” ou “raça vermelha”); as invenções de tais categorias saíram dos circuitos científicos e intelectuais e passou a pulular o imaginário social até hoje, constituindo-se em um grande mito.
Discutimos as implicações do determinismo racial imbricados pelos discursos genetizante do Eugenismo, práticas médicas na intervenção do corpo e saúde como estratégia higiênica de "limpeza étnica" e aperfeiçoamento biológico das "raças", sobretudo a Eugenia de "regeneração" e o Higienismo profilático (medicina preventiva) e os limiares históricos dos saberes psiquiátricos quando a partir de classificações da loucura, anormalidade e sexualidade, biotipologizam as categorizações dos chamados "degenerados mentais e biológicos" para operacionar seu poder institucional tanto nos manicômios judiciários, asilos-colônias, clínicas médicas quanto nas escolas, hospitais, conventos e prisões.
Entre os textos selecionados foram analisados Oliveira Vianna, Sílvio Romero, Araripe Junior, Nina Rodrigues, Batista Lacerda, Arthur Ramos, Roquette Pinto, Afrânio Peixoto, Henrique Roxo e entre outros intelectuais do fim do séc. XIX e início do XX e as teorias raciais ligadas à construção da nacionalidade, abordamos os projetos médico de educação e decorremos na análise das depurações do autor Renato Kehl, cujo seus pressupostos eugenistas foram ensinados em muitas escolas durante o início do séc. XX, ou seja, a eugenia também utilizada como estratagema pedagógico no enfoque à criança vista como "O futuro da geração". Discutimos o surgimento e o papel desempenhado pela instituição LBHM (Liga Brasileira de Higiene Mental), fundada no Rio de Janeiro em 1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel com a ajuda de filantropos, médicos-higienistas com objetivos de estabelecer proteção e assistência aos "doentes mentais" mediante o ideal de implantar um biologismo eugênico sob os tratamentos discriminatórios entre as medidas tomadas pela higiene pública e a legitimação de confinamentos para doentes (estigma da lepra, contágio do tuberculoso e doenças diagnosticadas como efeito da "miscigenação" e produzidas pelas determinações climáticas), loucos associados à imagem e identificação do "criminoso".
A tela pintada por Modesto Brocos Y Gomes em 1895 foi discutida nos primeiros dias. A pintura do quadro é feita em menos de dez anos depois de assinada a chamada "Lei Áurea" (1888) e representada no pós-abolição da escravidão no Brasil. O quadro é nomeado como "A redenção de Can" e retrata o ideal de branqueamento de uma futura nação mestiça tendente à dissolução das presenças de indígenas e negros como a solução para o país atingir a "pureza" da composição étnica brasileira. Foi utilizado pelo médico e antropólogo físico João Baptista Lacerda do Museu nacional no Rio de Janeiro como modelo de ilustração da memória "Sur Les Métis au Brésil" apresentada no I Congresso Mundial das Raças (SEYFERTH 1985; SKIDMORE 1993 [1974]: 64-69).
Conforme os meandros das elites intelectuais dos séculos XIX e início do XX, incumbidos da missão civilizatória e decisões políticas de se pensar o futuro da nação da sociedade brasileira, a título de exemplo o crítico literário Silvio Romero, via no embranquecimento das populações através da “mestiçagem” a solução e a saída para o Brasil trilhar à guinada rumo ao “Progresso”. Segundo João Batista Lacerda “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, p. 11). A “mistura racial” para esses autores, era marcada por um processo de transição e dissolução da presença de índios, negros e mestiços na composição etnológica vistos como “raça inferior”, portanto, motivo de “atraso” e impedimento à “civilização”. Enquanto outros estudiosos enxergavam na miscigenação a fonte da degeneração humana, entre eles estão Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Assim, perpassando sobre esses discursos raciais classificatórios que hierarquizavam e dividiam homens e sociedades na escala da superioridade e inferioridade biológica, percebemos de forma inequívoca o posicionamento discriminatório e determinantemente racista dessa vanguarda da intelectualidade dentre as quais pensaram nas linhas e direcionamentos da formação de uma realidade nacional que tanto se preocuparam e almejaram.
Contextualizamos e problematizamos a historicidade das teorias antropológicas monogenistas e poligenistas, a interface da medicina e direito e a psiquiatria na intervenção do corpo feminino.
Perpassamos nossas análises acerca da Antropologia Racialista no Século das Luzes (Iluminismo), os Enciclopedistas e o verbete "Nègres" da Encyclopédie de Diderot e D'Alambert, o Anti-semitismo vigente e a postura raciológica do Dicionário Filosófico de Voltaire, a teleologia histórica e o discurso racial da Antropologia Kantiana e a categoria "raça caucasiana" produzida pelas formulações científicas de Blumenbach e o surgimento de certas "noções" e ideários disseminados por uma "raça ariana". (o Arianismo formulado nas projeções inferidas pela alteridade)
E também, o advento do Contratualismo, Humanismo, a "perfectabilidade humana" e contrato social de Rousseau na Escola Clássica do Direito Penal e as mudanças nos discursos correcionais para a normalização da punição marcada pelo Bio-Determinismo, Antropologia Criminal e Medicina Legal ligados aos saberes médicos biológicos e o perito legista. Contexto este em que a Frenologia, a Antropometria e a Craniologia determinam sistemas classificatórios das "raças" e identificação da "delinqüência", delimitam segundo a Escola Criminológica Positiva Italiana de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e R. Garófalo (1836-1909) A Priori as predisposições ao crime e definem o perfil "anormal" e disgênico dos atos criminosos herdados pelas taras hereditárias da "degeneração".
Vale frisar o Utilitarismo de Jeremy Bentham, o Panoptismo e o nascimento da prisão na sociedade disciplinar e os limiares históricos do sistema penitenciário na interface da medicalização do discurso criminológico e biologização do saber jurídico e social.
Os objetos de estudos não se atentam mais no crime, mas na análise do perfil do criminoso no que diz respeito à tipologia de crimes cometidos, à etnicidade, à faixa etária e nacionalidade; Abordam-se problemas variados como o Alcoolismo, Epilepsia e Histeria, Embriaguez, Alienação Mental, "Anormalidades Sexuais" e Erotismos Desviantes, correlacionando Criminalidade à Degeneração entre "raças" para definir o controle ao delito e traçar as características biológicas do "Delinqüente". Neste sentido, Nina Rodrigues dizia que "para um povo de população heterogênea como o Brazileiro, a identificação craniológica das raças adquire em Medicina Legal uma importância máxima". (Gazeta Médica da Bahia, 1902)
Procuramos analisar como a psiquiatria no final do séc. XIX e início do século XX, sobretudo a psiquiatria Forense construiu uma feminilidade definindo o rótulo da "mulher degenerada histérica". O corpo da mulher para um saber especializado na loucura e institucionalizado como política de controle social estava intimamente ligado na dicotomia: "homens, cérebro, inteligência, razão lúcida, capacidade de decisão Versus mulheres, coração, sensibilidade, sentimentos". (ENGEL, p. 332)
Sua imagem feminina era qualificada nas implicações médicas, psiquiátricas, eugenistas, higienistas, psicanalistas e nas poesias e romances como o sexo "naturalmente frágil, bonita, sedutora e submissa”. No seu corpo carregavam-se as ambivalências ou ambigüidades da natureza do Bem e o Mal, atributos positivos e negativos, ou seja, exercendo sua "função social" de "boa esposa", mãe ou "dona do lar" e considerada como um ser "antinatural" pela sua perfídia e amoralidade. (características da prostituta e/ou da "mulher pública"). Em suma, trazia em sua sexualidade, afetividade e instintos corpóreos a natureza de ser ambiguamente a condição feminina de manifestar-se como Maria ou Eva; O corpo e sexualidade da mulher devido sua fertilidade e organismo procriador, constituiu num espaço privilegiado para as intervenções normalizadoras da Medicina e Psiquiatria, a Eugenia no cuidado das "raças" e futuro da prole e a atuação médica no controle da natalidade, exames pré-nupciais e seleção matrimonial para eliminar as descendências não desejáveis. (...)